Desta vez, o coronavírus não impediu a reunião de autoridades na Assembleia-Geral da ONU. Os diplomatas do mundo estão de volta.
Os nova-iorquinos, que desfrutaram da paz e da tranquilidade da Assembleia-Geral totalmente virtual das Nações Unidas no ano passado, enfrentarão mais uma vez o engarrafamento das caravanas diplomáticas nesta semana, conforme os líderes mundiais e suas comitivas chegam à sede do organismo internacional em Manhattan.
A 76ª sessão da Assembleia-Geral da ONU está prestes a dar início à sua semana de alto nível, em que os Estados-membros serão convidados a deliberar sobre dois desafios paralelos: acabar com a pandemia e redefinir a economia global pós-pandemia para ser mais saudável para o planeta.
A ONU vê o momento atual como um ponto pivô potencial. “As escolhas que fizermos irão garantir a saúde humana, econômica e ambiental para as gerações futuras, ou reforçar antigos padrões que estão destruindo a natureza e impulsionando a divisão social”, diz o resumo oficial da agenda da semana. “Uma recuperação de Covid-19 inclusiva, sustentável e resiliente é crítica para colocar o mundo no rumo de uma transição justa para um caminho de redução de 1,5°C.”
O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, que está prestes a embarcar em um segundo mandato de cinco anos, foi mais direto na terça-feira: “A guerra em nosso planeta deve acabar”.
Mas, primeiro, a pandemia deve acabar, e a questão do acesso às vacinas estará no topo da agenda da AGNU. Especialistas em saúde alertaram repetidamente que o mundo não deixará a Covid-19 sem imunização generalizada – e a Organização Mundial da Saúde (OMS) criticou duramente os estoques de vacinas e distribuição de vacinas das nações mais ricas, enquanto as nações pobres enfrentam escassez.
Mais de 70% das doses mundiais de Covid-19 foram administradas em apenas 10 países, disse a OMS na quinta-feira.
Covid-19: um problema na ONU
A Assembleia-Geral não teve exatamente um início unificado. Apesar de uma carta dos Estados Unidos encorajando os Estados membros a ligar virtualmente e ajudar a evitar a criação de “um evento de superespalhamento do vírus”, a programação de palestrantes para o Debate Geral – que começa na terça-feira (21) – mostra mais de 100 chefes de Estado e de governo chegando pessoalmente, incluindo o primeiro-ministro do Reino Unido Boris Johnson, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi e o presidente dos EUA, Joe Biden.
Até os ícones pop coreanos BTS estão alardeando o conselho para ficar em casa, com a boy band marcada para fazer uma aparição na segunda-feira.
A cidade de Nova York exige prova da vacinação de Covid-19 para reuniões internas – uma regra que as autoridades locais pediram que a ONU seguisse. Para facilitar o cumprimento, uma estação de vacinação única será montada no local. Mas dignitários visitantes não estão se mostrando totalmente cooperativos.

Brasil e Rússia já estão cutucando seus anfitriões locais, rejeitando veementemente a exigência de saúde. “Objetamos veementemente que apenas pessoas com comprovante de vacinação devam ser admitidas no salão da GA”, escreveu o representante da Rússia na ONU, Vassily Nebenzia, em uma carta à organização, de acordo com a agência de notícias estatal TASS. Nebenzia também observou que nem todos os países usam as vacinas aprovadas em Nova York.
O presidente brasileiro Jair Bolsonaro lançou o desafio nas redes sociais, declarando na quinta-feira que não seria vacinado antes do Debate Geral. Ele deve se dirigir pessoalmente à assembleia na terça-feira pela manhã, na função tradicional do Brasil como primeiro orador.
A ONU disse que confia em um “sistema de honra” de vacinação.
Geopolítica no grande salão
O Debate Geral é sempre a peça central da semana, com os delegados se vangloriando de seus países e pesando em questões globais – este ano provavelmente incluindo Covid-19, a caótica retirada ocidental do Afeganistão, tensões com o Irã e a Coréia do Norte, e uma rivalidade crescente entre os EUA e a China.
O presidente iraniano, Ebrahim Raisi, não viajará para Nova York, mas sua declaração gravada valerá uma escuta atenta em meio às negociações nucleares paralisadas. Palavras duras da China e da França também são esperadas na sequência do acordo surpresa da semana passada EUA-Reino Unido para fornecer à Austrália submarinos com propulsão nuclear para patrulhar o Pacífico – que antagonizou Pequim e prejudicou um acordo anterior com Paris. Sinalizando a profundidade de sua fúria, a França chamou na sexta-feira seus embaixadores dos Estados Unidos e da Austrália.
Os observadores da ONU anteciparam um conflito este ano por pelo menos duas cadeiras no Salão da Assembleia Geral – as de Mianmar e Afeganistão, onde regimes não democráticos chegaram recentemente ao poder, mas diplomatas que representam os governos anteriores ainda possuem credenciamento da ONU. Por enquanto, o comitê de credenciais da ONU não indicou qualquer intenção de mudar o status.
O representante permanente de Mianmar na ONU, Kyaw Moe Tun, é um remanescente do governo democraticamente eleito do país, que foi derrubado por um golpe militar em fevereiro. Um crítico franco da repressão mortal dos protestos pela junta, ele agora representa um movimento para restaurar a liderança democrática, conhecido como Governo de Unidade Nacional. A junta já havia tentado e falhado em substituí-lo.
Repórter da CNN Clarissa Ward nas ruas de Cabul / APO representante permanente do Afeganistão na ONU, Ghulam M. Isaczai, ficou preso no mês passado, depois que o governo que o nomeou desmoronou e seu presidente fugiu do país com o avanço do Talibã. Mas Isaczai continuou a defender o Afeganistão, reunindo-se com enviados estrangeiros e até apelando ao Conselho de Segurança da ONU para pressionar o Talibã a formar um governo mais democrático. A organização militante islâmica não solicitou credenciamento para um enviado este ano, e Isaczai pretende manter o controle da cadeira no Afeganistão por enquanto, disse o porta-voz adjunto do secretário-geral da ONU, Farhan Haq, à CNN.
O futuro da democracia sob o Talibã – e particularmente os direitos das mulheres e meninas – serão tópicos recorrentes ao longo da semana de reuniões de alto nível. O Conselho de Segurança da ONU votou por unanimidade na sexta-feira para estender sua Missão de Assistência da ONU no país por seis meses.
“Espero numerosas discussões sobre o Afeganistão”, disse a embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Linda Thomas-Greenfield, à imprensa na sexta-feira, acrescentando que os Estados Unidos estimulariam o Talibã a mostrar respeito pelos direitos humanos. Em geral, a delegação dos EUA enfatizará o combate às influências autocráticas “corrosivas” em todo o mundo, disse ela.
Uma reunião de líderes sobre racismo também refletirá a convulsão social no Ocidente. A reunião, intitulada “Reparações, justiça racial e igualdade para os afrodescendentes”, segue uma onda de avaliação racial nos Estados Unidos e em outros países ocidentais, e ocorre em meio a uma reação conservadora contra o ensino de verdades históricas dolorosas.
Clima
Tão grande quanto os dramas políticos são as consequências mortais do aquecimento global, após um ano de calor histórico, incêndios florestais e inundações.
De acordo com um novo relatório divulgado na sexta-feira pela Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, o planeta está caminhando para um aquecimento a 2,7 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais – muito acima do limite de 1,5 graus Celsius que os cientistas dizem ser necessário para evitar as piores consequências da crise climática.

Desviar este caminho “catastrófico” significa incluir ações climáticas na recuperação da pandemia mundial, e a Assembleia-Geral é vista como a última oportunidade de firmar compromissos globais antes do G20 do próximo mês, em Roma, e da conferência sobre mudanças climáticas COP26 em novembro, em Glasgow.
Na segunda-feira, o primeiro-ministro do Reino Unido Boris Johnson – co-anfitrião da COP26 – se sentará com o secretário-geral e dezenas de outros líderes em uma das poucas reuniões presenciais para discutir o meio ambiente, com foco nas responsabilidades do G20. No mesmo dia, a chefe do clima da ONU, Patricia Espinosa, o ex-vice-presidente dos EUA Al Gore e o presidente da COP26, Alok Sharma, falarão em um evento importante sobre como cumprir as metas estabelecidas no acordo de Paris de 2015.
Um debate especial aberto do Conselho de Segurança sobre clima e segurança segue na quinta-feira, e um evento virtual sobre energia sustentável será realizado no dia seguinte – o primeiro evento de alto nível desde 1981.
A semana também será uma oportunidade para alguns países e empresas – que ainda não estabeleceram metas de neutralidade de carbono – para finalmente fazê-lo e capitalizar a atenção global.
Contribuíram com essa reportagem: Richard Roth e Laura Ly, da CNN, em Nova York, e Angela Dewan, em Londres.
(Texto traduzido, leia original em inglês aqui)