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No centenário de Paulo Freire, especialistas mostram como pedagogia do pernambucano pode ajudar a enfrentar desafios da educação na pandemia

Estátua de Paulo Freire no campus Recife da Universidade Federal de Pernambuco, onde ele estudou e ensinou — Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press

Estátua de Paulo Freire no campus Recife da Universidade Federal de Pernambuco, onde ele estudou e ensinou — Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press

Dificuldades de ensino e aprendizagem na modalidade remota, restrições de acesso a recursos tecnológicos, professores sobrecarregados, alunos desmotivados... são inúmeros, e conhecidos, os desafios para a educação que foram impostos ou intensificados pela pandemia da Covid-19. No país que tem Paulo Freire como patrono da educação, surge, então, a dúvida: seria possível obter, a partir da pedagogia freireana, lições capazes de ajudar a enfrentar esses obstáculos? Especialistas dizem que sim.

Em homenagem ao centenário de nascimento do educador, pedagogo e filósofo pernambucano, o G1 questionou pesquisadores das obras e da vida de Paulo Freire e a viúva dele sobre que ensinamentos o legado freireano oferece para este momento difícil. Neste domingo (19), se não tivesse morrido em 1997 devido a problemas cardíacos, ele completaria 100 anos.

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Criador de um método inovador de alfabetização, que ensinava com base na experiência de vida e no cotidiano dos alunos para despertar neles uma consciência crítica sobre a sociedade, Paulo Freire se tornou conhecido no Brasil e no mundo por considerar a educação um ato político, que promove a liberdade e transforma a realidade.

Considerado subversivo pela ditadura militar, ficou exilado por 16 anos e escreveu mais de 30 livros, traduzidos para vários idiomas. A principal obra dele, "Pedagogia do Oprimido", lançada em 1968, é o único livro brasileiro que consta na lista dos 100 títulos mais solicitados nas ementas de cursos de universidades dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Austrália e da Nova Zelândia.

Apesar desse reconhecimento mundial e de ser patrono da educação brasileira desde 2012, Paulo Freire tem sido alvo de ataques do governo Jair Bolsonaro, que tenta transferir para a pedagogia freireana a culpa pelo fraco desempenho escolar do país em avaliações da qualidade da educação. Enquanto isso, as homenagens a Paulo Freire aumentaram: subiu para 50 o número de títulos de Doutor Honoris Causa atribuídos a ele, que é o brasileiro com mais titulações desse tipo.

Paulo Freire completaria 100 anos neste domingo (19) — Foto: Reprodução/TV Globo

Paulo Freire completaria 100 anos neste domingo (19) — Foto: Reprodução/TV Globo

O pensamento freireano reúne elementos para compreender a complexidade desta pandemia, segundo o francês Oussama Naouar, que é doutor em educação e filosofia e escreveu o livro “Paulo Freire: figuras do pedagogo, imaginário do pedagógico”. Pró-reitor de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ele vive desde 2010 no Brasil, para onde se mudou, entre outros motivos, em busca de aprofundar as pesquisas sobre Paulo Freire.

“A pedagogia de Paulo Freire é uma inspiração ainda mais forte nessas situações problemáticas como a que a gente está vivendo. O primeiro passo seria colocar a pandemia mesmo em debate, sua complexidade, sua realidade histórica para uma compreensão sistêmica. A lição que ele nos dá é que, dentro da sala de aula, deve ser abordada a questão da pandemia, a questão da vivência de cada aluno, de como ele vem vivenciando isso, permitir um diálogo sobre essa dificuldade. Isso é uma coisa muito importante, pois é encarar esses problemas, tentar enfrentá-los. Uma perspectiva freireana abraçaria essa realidade para tentar compreender e tentar agir diante dela”, disse.

Características essenciais da pedagogia freireana, como o diálogo e a humanização, têm potencial para ajudar a encontrar soluções para os desafios da educação em um cenário de pandemia. É o que aponta o professor Moisés Santana, que é pró-reitor de Extensão, Cultura e Cidadania da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e foi aluno de Paulo Freire no doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“Ele nos inspira a pensar uma educação, mesmo remota, que não perca a dimensão da humanidade, da capacidade de estabelecer a curiosidade, de uma interatividade ativa, em que os educandos sejam ativos no seu processo de construção de conhecimentos, que a sua curiosidade e a sede de conhecer e compreender o mundo sejam aguçadas, que possam entender as razões dos problemas da pandemia porque o Freire não queria que a gente compreendesse o mundo de maneira mecânica. A sua pedagogia buscava construir sentidos para o mundo e para a vida de modo crítico", declarou.

Entre os problemas existentes na educação brasileira acentuados pela pandemia, estão as desigualdades sociais dentro do ambiente escolar, pois as condições de acesso à internet e à tecnologia não são as mesmas para alunos ricos e estudantes pobres, de acordo com a viúva de Paulo Freire, a doutora em educação Nita Freire, de 87 anos.

“Se as crianças de classe média, de classe rica, estão progredindo e aprendendo, as crianças pobres, que não têm tablet, um lugar para estudar ou uma mãe que saiba orientar, estão ficando à margem. Paulo até dizia que não é evasão. Quando a criança sai da escola, ela não resolveu sair da escola. Foi posta, de alguma forma, que a única condição que ela tem é decidir não estar mais na escola. Isso é abandono escolar. É a não possibilidade de ela continuar na escola. Não se criam as condições para ela permanecer na escola. Em poucos anos, será uma grande diferença entre os conhecimentos das classes mais abastadas e das classes abandonadas. Isso vai gerar um outro problema de natureza muito grande porque vão ficando sempre à margem da sociedade", contou.

O historiador Dimas Brasileiro, que integra o grupo de pesquisadores da Cátedra Paulo Freire, da UFPE, listou aquelas que, possivelmente, seriam as principais preocupações de Paulo Freire, caso ainda estivesse vivo, com relação aos professores e aos estudantes e à educação na pandemia.

“Paulo Freire jamais aceitaria o retorno dos professores para a sala de aula sem o ambiente sanitário de vacinas, deixando as pessoas ali à própria sorte. Em segundo lugar, ele não estaria preocupado com os resultados, com esses grandes testes, nesse contexto de pandemia, e sim com a saúde física e mental dos professores e dos educandos também. Os estudantes viveram um momento terrível. De repente, eles se viram afastados da vida social. E a juventude é um momento de constituição da rede de sociabilidade, dos laços de fraternidade. Isso foi muito impactante para a juventude", relatou.

Cátedra Paulo Freire reúne 15 professores universitários que pesquisam a vida e a obra do pernambucano — Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press

Cátedra Paulo Freire reúne 15 professores universitários que pesquisam a vida e a obra do pernambucano — Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press

Para Dimas, que é professor do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), a pedagogia de Paulo Freire ajuda a estimular nos estudantes uma criticidade que é ainda mais essencial nesta época marcada por disseminação de fake news e posturas negacionistas com relação à Covid-19 e às vacinas.

"Hoje, a gente precisa de outros letramentos. Precisamos da conscientização política, da alfabetização digital e comunicacional porque, se nos anos 60, você era excluído e não podia votar porque não sabia ler e escrever, hoje você também fica carente de direitos e elementos fundamentais para se posicionar no mundo se você não souber manusear equipamentos tecnológicos ou interpretar com propriedade um produto midiático para discernir o que é uma desinformação. O letramento digital e o comunicacional são para que as pessoas possam fazer uso dos meios de comunicação de uma maneira crítica, cidadã, democrática. De contrário, vão estar condenadas à desinformação, às campanhas de ódio e de medo e às fake news”, afirmou.

Nessa missão de conscientização crítica, a escola tem um papel fundamental sob a ótica do pensamento freireano, ressaltou o doutor em história e filosofia da educação Sérgio Haddad, que tem 72 anos e é autor de uma biografia sobre Paulo Freire.

“O mais importante nesse retorno à escola, numa perspectiva freireana, é trazer uma perspectiva positiva, sobre qual foi a aprendizagem que esses alunos tiveram durante a pandemia. Olhar as aprendizagens como um elemento importante desse processo, o que as pessoas aprenderam com essa pandemia. Todos nós passamos por aprendizagens importantes na nossa vida, e os alunos também. Então, nós temos que também valorizar esses aspectos: o da perda, o da vida, tudo isso deveria ser considerado na sala de aula", declarou.

Escola fundada por Freire

Foi exatamente isso que os diretores e professores do Instituto Capibaribe, localizado no bairro das Graças, na Zona Norte do Recife, resolveram fazer com os alunos. Criada por Paulo Freire e outros educadores em março de 1955, essa escola particular aplica, desde a sua fundação, a pedagogia freireana e foi reconhecida, em 1965, como de utilidade pública estadual pela Assembleia Legislativa de Pernambuco.

Diante da pandemia da Covid-19, o colégio buscou extrair do pensamento de Paulo Freire, que dirigiu a escola durante um ano e meio, lições para ajudar alunos e professores a enfrentarem os desafios impostos à educação, como ensino remoto, evasão escolar e limitações de recursos tecnológicos, de acordo com a diretora adjunta do Instituto Capibaribe, Maria Sobral (veja vídeo abaixo).

Saiba como escola fundada por Paulo Freire se adaptou aos desafios da educação na pandemia

Saiba como escola fundada por Paulo Freire se adaptou aos desafios da educação na pandemia

"Uma escola com pedagogia freireana tem muito mais condição de se reinventar. Num primeiro momento, a preocupação da gente era manter a sanidade de todos. Então, a primeira preocupação era que as crianças estivessem inteiras. As famílias estavam muito aflitas. Preservar a integridade dos estudantes foi o nosso primeiro objetivo. A gente fez um diário de bordo, onde eles descreveram o que estava acontecendo, que eles contassem para a gente o que a gente estava vivendo", declarou.

Durante esse período de adaptação à nova realidade, a escola procurou desenvolver um cronograma que não deixasse os estudantes muito tempo em frente à tela do computador, do tablet ou do celular, ainda segundo a diretora adjunta.

"A gente foi, sem pressa, respeitando tanto o que os professores tinham como também o que as famílias tinham em casa, montando um formato que não enchia, num primeiro momento, as crianças de aulas, tentando espelhar o que era vivido na escola dentro de casa porque isso era irreal, isso era convocar os meninos a terem muito mais tempo de tela do que seria saudável", afirmou.

Com a retomada das aulas presenciais, surgiu a necessidade de ajudar professores e alunos a dar um novo significado ao uso da tecnologia no ambiente escolar.

"A gente precisou lançar mão desse que foi um recurso para aproximar da escola, dos colegas, dos professores e, agora nesse caminho de volta, a gente tem tentado resgatar um pouco essa ideia, com os pequenos, do mínimo que se precise, e, com os mais velhos, aprender a usar mais assertivamente, de um jeito que dialogue mais com as necessidades, então foi uma aprendizagem muito importante para os estudantes e também para os educadores", contou.

Localizado no Recife, o Instituto Capibaribe é uma escola particular que foi fundada e dirigida por Paulo Freire na década de 1950 — Foto: Reprodução/TV Globo

Localizado no Recife, o Instituto Capibaribe é uma escola particular que foi fundada e dirigida por Paulo Freire na década de 1950 — Foto: Reprodução/TV Globo

A conscientização crítica dos estudantes, que é defendida e estimulada pela pedagogia de Paulo Freire, adquiriu um valor ainda maior neste momento de pandemia, pois ajudou os alunos a compreenderem a importância de adotar e respeitar as medidas de prevenção à Covid-19.

"Quando retornamos [as aulas presenciais], a gente dizia muito para os meninos que a máscara é um símbolo: para além de um instrumento de proteção, é um símbolo de um reconhecimento de que existe a pandemia, de que é um problema não só de um, é um problema coletivo. E não tem saída individual para isso. Ou a gente assume isso como uma questão desse momento ou a gente não sai desse lugar", disse Maria Sobral.

Ainda de acordo com ela, até as crianças muito pequenas que estudam no local passaram a utilizar a máscara de maneira mais natural, como algo que passou a fazer parte do cotidiano e da convivência na sociedade.

"Tudo isso faz parte do aprender. Para cada acesso, os meninos limpam, higienizam, são coisas que cansam no cotidiano, mas é muito mais um símbolo de dizer que ela [a pandemia] existe e a gente vai aprender com isso. E, diante dessas aprendizagens, a gente vai construir saídas éticas e que respeitem as pessoas e o conjunto da coletividade", relatou.

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